sábado, 6 de fevereiro de 2010

O meu avô Elviro

ELVIRO AUGUSTO ROCHA GOMES
(1918-2009)

O meu avô sempre foi um homem muito rico. O seu património era sobretudo o seu conhecimento, a sua cultura, a sua voz, a sua criatividade, o seu carisma, o seu interesse pelo próximo, as suas preocupações humanísticas, e por aí fora. Falar portanto sobre o meu avô é uma tarefa longa. Foi uma pessoa que marcou pela sua actividade como professor, escritor, tradutor e outros desempenhos na esfera cultural. Sei que causava uma impressão muito forte nas pessoas que se cruzavam com ele. Na Alemanha deram-lhe o epítome “Das unique”, ou seja “o único”. Além disto era o meu avô e é nessa qualidade que aqui o lembro.



Lembro-me de quando o meu avô ia visitar-me a Lisboa, na minha infância, da sua presença carismática. Uma vez, eu teria para aí uns seis anos, fomos a uma loja de roupa, deparando-nos com uma senhora visivelmente triste atrás do balcão, e enquanto eu via as roupas o meu avô foi conversando com a senhora, despoletando-lhe o riso. Provavelmente ofereceu-lhe também um dos livros que tinha sempre na sua mala a tiracolo. Depois de nos decidirmos quanto às roupas, um kispo e umas calças, a senhora insistiu em não cobrar nada, apesar do meu avô, cordialmente insistir em pagar. Ainda me lembro de a senhora, sensibilizada, afirmar que só uma pessoa como o meu avô para tê-la feito rir naquele momento!



Dávamos bons e grandes passeios a pé, dizíamos que íamos ver as grutas, e lá íamos nós confundindo pequenas clareiras em terrenos abandonados, ou hiatos em arbustos, com grutas. Jogávamos o jogo de descobrir o que um de nós estaria a ver, uma frase num cartaz, um sinal de trânsito, uma porta peculiar ou qualquer outra coisa que nós julgássemos difícil de o outro descobrir inserida no cenário dos nossos passeios. Conversávamos muito, o meu avô contava-me curiosidades históricas que eu apesar da idade ouvia atentamente graças á grande capacidade comunicativa do meu avô.



Tinha sempre um bloco de notas onde escrevia de imediato quando um poema ou uma ideia lhe ocorria, o que sucedia com muita frequência. Também gostava de desenhar com o que tinha á mão, esferográfica ou lápis. Desenhava caras, e as paisagens dos sítios por onde passava, a vista do apartamento onde eu vivia, a vista num jardim, ou numa esplanada de um café, etc.



Conversava abertamente com estranhos com quem se cruzava, e tinha um magnetismo que tornava gestos normalmente prosaicos e banais em momentos únicos repletos de humor como por exemplo comprar um bilhete de comboio, pedir uma informação, ser atendido num café ou num restaurante, etc.



Era sempre com enorme expectativa que eu aguardava as suas visitas e o privilégio de ouvir a sua voz grave e eloquente. Sabia agradar o neto, e íamos sempre comprar uma prenda ou mais. Quando estava em Faro e eu em Lisboa o meu avô enviava-me assiduamente postais em que descrevia episódios humoristicamente através de desenhos onde ele aparecia com o escasso cabelo desgrenhado e óculos contracenando comigo de calções e pernas tipo caniços.



Todas as suas atitudes comigo eram pedagógicas, sempre me disse: “não deixes para amanhã aquilo que podes fazer hoje”. Instigava-me a desenhar ou a fazer composições, obras essas que me pagava sempre em dinheiro, guardando-as religiosamente numa gaveta. Um dia surpreendeu-me com uma carta que mencionava um prémio de desenho que eu tinha ganho, pois, sem me ter dito nada, o meu avô tinha enviado alguns desenhos meus para um concurso.



Depois de os meus pais se terem divorciado vivi com o meu avô e a minha mãe na casa dele. Nessa altura eu queria uma mesa de snooker ao que o meu avô sugeriu que a construísse. Fiz duas tentativas com materiais diversos, madeira, cortiça, uma mesa velha e após tê-la terminado o meu avô comprou-me um taco mas colocou-se o problema de arranjarmos umas bolas adequadas, e, depois de tentarmos jogar frustemente com bolas de ping-pong fomos á procura duma loja que vendesse bolas de golfe. Foi uma busca diligente, viajámos de comboio, andámos kilometros a pé, percorremos estradas difíceis até finalmente chegarmos à loja de que nos tinham informado nas nossas indagações. O meu avô determinado não tinha deixado esmorecer o meu pequeno sonho.



Em casa, foi no Jardim cheio de história, construído com carinho pelo meu avô, denominado Jardim da Concórdia que passámos algumas das nossas melhores convivências. Anos mais tarde, depois de ter voltado para Lisboa e novamente voltado a morar com o meu Avô, por volta dos meus 17 anos, foi no Jardim da Concórdia que esculpi o busto do meu avô em barro.



Nessa altura apesar da idade do meu avô rondar os 80 anos ele mantinha a mesma vitalidade com que sempre o conheci. Lembro-me de o ver empoleirar-se num muro estreito do Jardim para apanhar umas nêsperas. Continuávamos a fazer grandes caminhadas, por uma ou duas vezes fomos a pé de Faro até à praia de Faro, que presumo serem sensivelmente 8 Km, e voltámos a pé.



Mais tarde ainda, quando eu já tinha a minha mulher o meu avô passou a ser a nossa companhia predilecta, contagiando-nos com a sua presença e o seu bom humor, nas jantaradas ou almoçaradas para as quais ele frequentemente nos convidava.



Octogenário, era ainda um homem extremamente activo. A demonstrá-lo refiro por exemplo que se surgisse nas nossas conversas alguma dúvida sobre o significado exacto de uma palavra, ou qual a palavra mais apropriada para determinado contexto, o meu avô sem meias medidas ia imediatamente consultar a sua biblioteca. Era comum vê-lo de madrugada agarrado a um livro, a fazer um tradução ou a escrever poesia. Poemas que mos lia, amiúde, com grandes qualidades de actor. Quando hoje leio os seus poemas parece que quase ouço a sua voz, grave, eloquente e vivaz.



Parecia imortal mas veio a doença, no entanto, apesar do seu sofrimento, nunca quis de maneira nenhuma preocupar os outros e mostrou uma dignidade enormíssima. Nas primeiras vezes em que foi parar ao hospital em risco de vida, depois de ter ultrapassado os momentos mais críticos, continuava a fazer rir quem o rodeava.



Ainda houve duas vezes em que o meu avô me surpreendeu no meu local de trabalho dessa altura, tendo se deslocado a pé, uma distância considerável para irmos comer uns caracóis.



A minha maior riqueza é de longe e será sempre a interior tendo herdado do meu avô grande parte desse legado.







(João Pedro. Madrugada, Fevereiro de 2010)



Um comentário:

  1. João, numa incursão à tua página do facebook descobri o teu site e o teu blog. Curiosa, como me é próprio, resolvi espreitar:-). Agradou-me esta simbólica homenagem ao teu avô, de quem sempre te ouvi falar com muito amor. Um beijinho e até breve. Fúlvia

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